sexta-feira, 22 de abril de 2011

Cecília Coimbra relata a situação dos direitos humanos

Entrevista com  CECÍLIA COIMBRA - 29.11.2005
*CECÍLIA COIMBRA
Vinte anos depois da criação do Grupo Tortura Nunca Mais (www.torturanuncamais-rj.org.br), que ajudou a fundar, Cecília Coimbra relata que a situação dos direitos humanos hoje é pior do que nos anos da ditadura orientada pela CIA. Hoje a tortura acontece nos presídios, nos estabelecimentos para jovens infratores, nas delegacias policiais, etc., onde os meios de comunicação de massa parecem não enxergar.

Marcelo Salles - Tivemos avanços com o governo dos "companheiros"?
Eles são companheiros sim, são nossos companheiros... Muito poucos avanços. É óbvio que em 1985, quando o Tortura Nunca Mais surgiu, era um outro contexto: recém-saído da ditadura, início da Nova República, o José Sarney assumindo. Há todo um grande conchavo com essas elites, que foi feito naquele momento. De uma transição pacífica da ditadura militar para uma ditadura de mercado, digamos assim, onde os governos se "desassumem". O novo ciclo que se inaugura com o José Sarney, que foi um dos que apoiaram a ditadura militar, todos os desmandos e atrocidades que foram cometidos naquele período... Quer dizer, se a gente fizer uma comparação do Brasil com os outros países da América Latina que também passaram por ditaduras militares, nos anos 60 e 70, a gente vê que o Brasil é o mais atrasado de todos. Mesmo o Chile, com a presença do Pinochet, avançou muito...
Marcelo Salles - Atrasado em que sentido?
De resgatar o que foi o período da ditadura. De levantar na realidade o que ocorreu naquele período, não só as torturas, as perseguições acontecidas, mas também a questão dos mortos e desaparecidos, dos torturadores, e de todos aqueles que se implicaram direta e indiretamente com o aparato de repressão... O Brasil é o mais atrasado. A lei da Anistia, quando vem, em 1979, é uma lei extremamente limitada; a sociedade civil naquela época clamava por uma anistia ampla, geral e irrestrita, que não veio. Veio uma anistia extremamente limitada, tanto que pouquíssimas pessoas foram anistiadas. Há pessoas, por exemplo, que estavam sendo acusadas de "crimes de sangue", como eles diziam. Essas pessoas não foram anistiadas! Isso já em 79. Em 85, quando vem a Nova República, essa transição do governo militar para o governo civil, quando o grupo Tortura Nunca Mais surge, justamente, é um período bastante conservador. Hoje nós temos um governo que foi uma coalizão de PT e outros partidos e muito pouca coisa mudou. Muito poucos avanços com relação à questão dos direitos humanos, à questão de resgate do período da ditadura militar. No Grupo Tortura Nunca Mais a gente faz questão de revelar o que houve no período da ditadura militar, tentando resgatar essa memória, tentando responsabilizar aqueles que foram membros do aparato de repressão e puni-los; trazê-los à "execração pública", como a gente diz. Também tentamos fazer a ligação da questão da impunidade e da violação dos direitos humanos hoje. Tanto com relação a esse resgate quanto com relação à violação dos direitos humanos hoje, piorou. A situação hoje é pior do que em 1985, apesar de ter um governo de coalizão do PT. No próprio governo Lula, nós tivemos retrocessos muito grandes. Tivemos, por exemplo, uma coisa que ocorreu, que foi muito importante pra gente: um processo instaurado há mais de vinte anos correndo na Justiça sobre a Guerrilha do Araguaia, aquele grupo de guerrilheiros do PCdoB, que foram totalmente exterminados, quase 70 pessoas, fora o pessoal da região, todos desaparecidos políticos. Houve a sentença de uma juíza, uma sentença belíssima, de uma coragem muito grande, onde ela responsabilizava a União por essas mortes, e colocava que a União deveria abrir os arquivos sobre a Guerrilha do Araguaia, e chamar pessoas que foram responsáveis pela repressão no Araguaia. Isso no governo Lula. E nós fomos a Brasília pedir que o governo não entrasse com recurso, mas a Advocacia Geral da União entrou com recurso, dizendo que não iria abrir.
"O inimigo da ditadura de mercado são os pobres"
Mariana Vidal - Alegando o quê?
Baseado num decreto chamado Lei de Arquivos, votada no apagar das luzes do governo FHC e assinada no início do governo Lula. A Lei fala da questão do sigilo eterno, cujo texto afirma que documentos considerados importantes para a segurança do regime serão vedados durante 50 anos, podendo ser vedados por mais 50, ad infinitum. Na época que o Lula assinou a gente já tinha se levantado contra ele, já tínhamos inclusive feito um movimento de historiadores, etc. Porque é uma forma de você impedir que a sociedade brasileira saiba o que aconteceu no país, em nome da segurança nacional. Então, veja, a "doutrina de segurança nacional não está vigendo mais", mas ela está vigendo, com relação aos documentos. Então, o argumento deles foi esse, de que havia um decreto que impedia que determinados documentos, que têm a ver com a segurança do regime, fossem tornados públicos. E isso está correndo. Recentemente eles entraram com recurso e como a justiça é lenta nesse sentido, essa tramitação é lenta. Isso foi um absurdo! A gente sabe que existem os arquivos do Serviço Nacional de Informações, do Serviço de Informação do Exército, da Aeronáutica, da Marinha, dos DOI-CODIs, né? Arquivos esses que nunca foram abertos. Arquivos esses que a gente sabe que existem, porque de vez em quando aparece um documento na imprensa, entregue por algum militar. E a abertura desses arquivos é sistematicamente negada, o governo Lula mais uma vez nega. E a gente está numa campanha internacional pela abertura dos arquivos secretos da ditadura. Até hoje isso não foi feito. Então, com relação ao resgate histórico, a gente piorou, porque a gente teve avanços na justiça, com essa sentença dessa juíza e o governo não cumpriu. Com relação à violação dos direitos humanos hoje, a gente sabe que a tortura continua cotidiana, nos estabelecimentos oficiais. A gente sabe onde tem tortura, como tem tortura, quem tortura. A gente sabe disso! Nos presídios, nos estabelecimentos para jovens infratores, nas delegacias policiais, a gente sabe! A gente tem acompanhado isso. Quer dizer, se houvesse vontade política do governo isso já teria acabado. Como não existe, a tortura cada vez se dissemina mais. Não só a tortura, como também o extermínio da população pobre. O número de desaparecimentos hoje é altíssimo, e a gente não tem um número exato porque quem pratica tortura são os agentes do Estado, é o Estado! A gente não tem acesso a esses números, só que pela quantidade de pessoas que nos procuram, pelo contato que a gente tem com outras entidades de direitos humanos, a gente sabe que esse número é altíssimo. E a questão da tortura é uma questão muito séria porque a pessoa é torturada não só para dar informação: a tortura é um mecanismo de controle social poderosíssimo! Não só no sentido de calar a boca, mas de impedir que outras pessoas tenham coragem de denunciar. São poucas as pessoas que passaram por tortura e se dispõem a denunciar. E até os próprios familiares, os próprios amigos, as pessoas mais próximas, se sentem ameaçados, porque a ameaça é constante mesmo, principalmente em cima da população pobre. A doutrina de segurança nacional, que dizem que acabou, a doutrina do inimigo interno, como havia naquele período da ditadura, essa doutrina continua vigendo no país, agora para a população pobre. Hoje, o inimigo interno dessa grande ditadura de mercado que está aí é a pobreza! Quem não tem lugar no mercado tem que ser exterminado. E estão sendo exterminados! A gente sabe que a juventude pobre nesse país está sendo exterminada. De 14 a 22 anos, pobres, de sexo masculino, estão sendo exterminados. Tem números altíssimos com relação a isso. Então, veja, piorou e muito a questão dos direitos humanos no Brasil.
Táia Rocha - A que a senhora atribui o desinteresse especificamente do governo Lula no andamento desse processo - porque ele, em dezembro de 2004, acenou com uma medida provisória que revogaria a Lei de Arquivos, mas até hoje nada...
Eu atribuo isso às alianças que foram feitas. Da mesma forma que o governo Sarney, que passa do governo militar para o governo civil em 1985, em que foram feitos grandes acordos das elites. O governo Lula, durante o período de eleição, antes de ele assumir o poder, a gente via a quem ele se aliou: às forças mais retrógradas e reacionárias! Quando a gente tem um Antônio Carlos Magalhães aliado, quando a gente tem um Marco Maciel, quando a gente tem o PL, o próprio vice-presidente! Quer dizer, sim, é um governo que tem forças extremamente conservadoras e que fez pacto com os militares. Por que não abrir os arquivos? Porque a gente sabe que vai ter nome de muita gente, não só de militar, mas também civis, que apoiaram e respaldaram o golpe, e que se locupletaram com a ditadura militar, e que hoje estão aí, em postos importantes no governo. Nos diferentes governos. Então não interessa! Esses acordos não permitem isso. Essa questão das alianças... A gente dizia "ditadura civil e militar" porque os militares foram testas-de-ferro daquilo tudo. Os golpes na América Latina, nos anos 60 e 70, foram para a implantação definitiva das multinacionais na região. Eles foram úteis, tanto que quando eles saem, de um modo geral, os militares que tiveram destaque (alguns presidentes, o Geisel, etc. e tal) vão participar de multinacionais depois, o golpe vem em 64 muito em cima disso. E, quer dizer, não foram só os militares, como eu estava dizendo, os civis também participaram ativamente da ditadura. E as alianças que foram feitas pelo governo Lula, pelo PT... Tanto que eles até fazem questão de dizer "não é um governo do PT, é um governo de coalizão".
Mariana Vidal - Tem muitos torturadores daquela época que estão hoje ocupando cargos públicos. Tem algum movimento contra isso (porque muita gente nem sabe que eles foram torturadores), para alertar a população, para tentar tirá-los da vida pública?
O grupo Tortura Nunca Mais surgiu em cima disso especificamente. O movimento começou quando a gente começa a ir pra imprensa denunciar que as pessoas que ocupavam vários cargos de confiança no governo Brizola tinham sido torturadores. E aí, naquele momento foi que a gente viu que havia necessidade de um grupo, havia um vazio a nível de sociedade civil, no sentido de tentar pensar a questão dos mortos e desaparecidos, que era uma questão como se fosse passado, "não temos mais nada a ver com isso" em 85, né? E a questão da violência hoje, da violência atual, fazer essa junção. E nós conseguimos o afastamento de alguns. De vez em quando a gente descobre alguém na área federal. A gente vive denunciando. Em alguns casos temos conseguido afastamento. Mas é difícil.
"Os militares foram testas-de-ferro das multinacionais"
Marcelo Salles - Em alguns casos vocês até foram impedidos pela justiça, ou foi um caso só?
Não, eu não posso falar...
Marcelo Salles - Você não pode nem falar sobre isso?
Não posso. Foi um caso aqui da Polícia Federal. Da Polícia Federal do Rio de Janeiro. Que a gente denunciou e o cara abriu processo contra a gente, ganhou na justiça, pelo menos na primeira instância, estamos entrando com recurso...
Marcelo Salles - Não pode dizer nem o nome?
Não posso nem falar o nome. Porque nós estamos impedidos. Você vê a loucura que é? Em 85 a gente tinha muito mais condições de falar do que hoje a gente está tendo! E agora respaldado pelo governo federal! Porque é um órgão federal.
Marcelo Salles - Vocês têm prova de que ele foi torturador?
Temos a testemunha! Ele não foi torturador no período da ditadura, ele torturou há coisa de uns seis anos atrás. Nós temos o caso! Eu não posso falar o nome do infeliz. E isso é uma coisa seríssima, porque isso cria uma intimidação aos movimentos sociais. De não poderem denunciar. Isso é muito sério, isso cria, assim, um antecedente seríssimo. Em termos de censura, em termos de você ser impedido de denunciar.
Marcelo Salles - E a justiça determinou o quê, multa, se vocês falarem sobre isso?
É, multa, nós temos multa e vamos ter que pagar uma. Como o processo foi arquivado, esse cara "não tem culpa nenhuma". Embora tenha a testemunha viva de que ele comandou as torturas.
Marcelo Salles - Multa de quanto, sabe?
Não sei de quanto é a multa, a gente tem que pagar por perjúrio e difamação, calúnia... É um negócio absurdo, realmente absurdo! E eles já faziam um pouco isso, eu fui testemunha de defesa do Jornal do Brasil e de O Globo. Porque eles processaram jornalistas! Por terem denunciado outros casos, pessoas que foram denunciadas por nós e que os jornalistas publicaram. Acabou não dando em nada, o processo. Mas é uma forma de intimidar, de intimidar os jornalistas, entendeu? Como agora é uma forma de intimidar os movimentos sociais. Negócio muito sério, né? Que esses caras têm muito poder ainda... Eles estão aí fazendo escola, formando novos torturadores... E com um poder muito grande. Quer dizer, no governo Lula, essa pessoa fica ainda na ativa, entendeu? Com a justificativa de que, na justiça, nada foi provado.
Mariana Vidal - E, agora há pouco, você falou da população pobre, que é a mais atingida; eu lembro que na sua entrevista da revista Caros Amigos você falou na formação do policial, eu vi também a Marina Magessi falando sobre isso, que a própria formação está toda deturpada. Quando até mesmo, no caso da Marina Magessi, uma pessoa que é da polícia, já tem essa concepção de que está errado, o que falta para mudar?
Vontade política, né? Porque veja, essa concepção, eu até faço... Eu fui fazer um trabalho de pós-doutorado muito em cima disso: por que a gente associa tanto pobreza com criminalidade, com periculosidade? "Se é pobre é perigoso em potencial, é criminoso em potencial?" Quer dizer, isso vem desde o século XIX, no nosso imaginário, na nossa subjetividade, ou seja, a gente que passou por mais de 300 anos de escravidão, tem essa marca de que "tem uns que são menos do que outros", e isso é muito forte, as teorias racistas, as teorias eugênicas, o "higienismo". E isso permanece até hoje! Com outras caras, com outras fisionomias, mas dentro da desqualificação de que o pobre, ele é menos. Aí se chega à concepção de que ele é menos humano.
Mariana Vidal - E a polícia parece que é treinada para ver dessa forma.
Não, parece não, ela é treinada! Ela é treinada para ver o pobre como um inimigo! Ela é produzida pra isso! Tanto...
Marcelo Salles - Mas o policial não é pobre também?
É.
Marcelo Salles - É treinado para ver a si mesmo mais ou menos...
Pois é. A gente vê isso na formação de professores primários!
Marcelo Salles - Como assim?
A gente vê isso, por exemplo, com a professora primária, que hoje em dia é uma profissão cada vez mais desqualificada. De modo geral, o professor primário vem de todo um extrato social pobre. Óbvio que a formação que eles têm na escola normal acaba entrando naquelas teorias da carência, onde se prova que, cientificamente, algumas crianças, pelos seus lares, pelas relações que têm com seus pais, são carentes, e que têm dificuldades de aprendizagem. Eu trabalhei muito com essa questão porque eu fui psicóloga de escola. E isso a pessoa acaba naturalizando. Quer dizer, esses professores que vêm desse extrato social acabam achando que esse extrato social é um extrato que tem dificuldades, que tem problemas mesmo. Só que você não consegue enxergar que essas pessoas têm outros arranjos para viver, que não o modelo oficial de família, o modelo que é o modelo hegemônico do capitalismo! São esses modelos que o capitalismo o tempo todo institui. Qual é o melhor modelo de ser mãe, o modelo de ser pai, o modelo de ser filho, qual o modelo "mais saudável" de família, que é o modelo do capitalismo! Toda e qualquer pessoa que fuja a esses modelos é colocada fora da norma. Elas são colocadas como "diferentes"! E como diferentes são inadequadas e inferiores. O capitalismo institui a norma o tempo todo, e é na norma que você controla o outro. Que você tenta trazer o outro para os modelos instituídos, os modelos que são os modelos dominantes. Que interessam ao capitalismo para o seu funcionamento, né? Você vai ver isso na escola, com relação às castas populares, você vai ver isso nos presídios, os próprios presidiários assumem isso! Que eles são o que são porque eles advêm de uma família desestruturada. Quer dizer, o próprio pobre assume que ele está errado! Ele não consegue perceber como ele está conseguindo produzir uma outra coisa! Que é diferente daquele modelo hegemônico, mas que ele está produzindo uma coisa interessante, em termos de sobrevivência. Quem dizia muito isso era o Milton Santos. Que mostrava como é que a pobreza cria e recria pela própria necessidade de sobreviver. Mas todos esses arranjos que a pobreza faz para sobreviver ela própria desqualifica, porque a fala oficial, que é a fala que está nos meios de comunicação de massa, desqualifica esse tipo de vida que eles levam. Porque está fora do modelo oficial, está fora da norma. Então quando eu estou dizendo "não é só policial que é treinado..." - policial que vem inclusive de extratos populares - mas ele é formado para ver naquele morador de favela, por vezes ele até mora em favela também, um sujeito que pode ser perigoso. E as músicas que eles cantam... Aquele treinamento, gente, o tiro, a aula de tiro que eles têm... Você ganha os maiores pontos quando você atinge a cabeça e o coração. Você não é treinado para imobilizar o cara! Não existe braço nem perna no modelo onde eles fazem tiro ao alvo! Os policiais militares, por exemplo, aqui do Rio de Janeiro. Porque os pontos maiores que eles ganham na aula, no curso que eles fazem, é quando atiram em órgãos vitais. É um boneco que não tem nem braço nem perna, então não é para você imobilizar o sujeito! Eles são treinados para exterminar.
Mariana Vidal - Cecília, essa formação do policial vai mudar, você tem esperanças que isso mude?
Veja bem, eu acho que as polícias existem como braço armado do Estado. Eu acho que, no capitalismo, o Estado é um Estado repressor! E cada vez mais ele vai ser um Estado punitivo e repressor, como ficou falado. Eu acho que a gente pode tentar mexer um pouco com isso, eu acho que denunciando... Sabe, eu acho que é importante que haja pessoas interessantes dentro das polícias militares... Agora, eu não acredito, porque eu não acredito no mito do Estado democrático de direito dentro do capitalismo, entendeu? Eu acho que o Estado capitalista é esse mesmo! E a gente tem que saber que é isso, para continuar denunciando, mas saber que o avanço vai ser muito pequeno! Muito pequeno. A gente pode, sim, é tentar produzir pequenas revoluções em pequenos espaços, tentar produzir coisas interessantes, isso a gente consegue produzir! Não é porque esse Estado capitalista poderosíssimo está aí e cada vez tende mais a ser punitivo e repressor que a gente vai cruzar os braços e "tá tudo dominado, a gente não pode fazer nada". Eu acho que a gente pode fazer, sim. No cotidiano, nas pequenas coisas. Olha, não tenhamos a ilusão de que esse Estado vai "dar as coisas" porque não vai. Ainda mais esse Estado mínimo neoliberal, não vai mesmo! Não é por acaso que a gente vê as alianças que o PT fez e tem muito a ver com o momento, com o contexto internacional em que a gente vive! De neoliberalismo, né?
Mariana Vidal - E o "caveirão"?
Uma loucura aquilo do caveirão!
Mariana Vidal - As autoridades públicas, quase todas, são a favor... A própria imprensa de um modo geral é a favor. O grupo Tortura Nunca Mais já se posicionou?
Não, não, nós temos posição. Que é a questão de você achar que a favela é um lugar de ninguém, é uma terra de ninguém, é lugar de bandidos! Eu duvido que o caveirão passe aqui pelas ruas de Icaraí! Não passa! Agora, vai lá pra favela. Lá pro Morro do Cavalão, por exemplo. Porque se criou essa concepção de que esses locais são terra de ninguém, são locais de bandido! Então, vale tudo ali! É aquela coisa: eu duvido que determinadas posturas repressivas sejam tomadas em bairros de classe média, ou de elite; não são! São tomadas nos bairros de periferia, nos bairros de população pobre. São dois tratamentos, a gente sabe, isso está claro! Os próprios policiais, uma vez eu estava entrevistando alguns policiais em São Paulo, e eles diziam isso, claramente: "nós temos um comportamento dependendo do bairro em que a gente vai policiar. Pros bairros de classe média e elite a gente tem um determinado comportamento, pros bairros de periferia a gente tem outro". Isso, dito pelos próprios policiais de São Paulo, na época do governo Mário Covas, que era até um governo um pouco mais aberto e tal...
Táia Rocha - Eu queria saber como é a questão da segurança de vocês do movimento, vocês são muito ameaçados, como que vocês lidam com isso?
A gente já foi ameaçado, né? Agora está uma calmaria (risos). Tivemos duas grandes ameaças. A gente está sempre recebendo cartas. Cartas anônimas, me xingando, me xingando mesmo, dizendo palavrão, me chamando de "rameira", aquelas linguagens bem antigas, a sensação que dá é que é aquele "velho babão". Com a letra tremida, aí vem "remetente: Duque de Caxias" (risos) ou o endereço do Ministério do Exército, e de vez em quando a gente recebe essas cartas. Agora, a gente teve duas ameaças que foram por telefone. Ligaram para minha casa e ligaram para casa do presidente na época que era o João Luiz Moraes, pai da Sônia Angel, já falecido. Ele era major da reserva do exército e foi quando a gente fez a inauguração de ruas em bairros da periferia com nome de companheiros mortos e desaparecidos políticos. E a gente inaugurou a rua Carlos Lamarca, a rua Carlos Marighela. Quando a gente chegou para o lançamento da Carlos Lamarca, as placas da rua tinham sido retiradas durante a noite, os moradores não sabiam. E aí a gente recebeu um telefonema perguntando "a senhora já..." - e falou a mesma coisa com o Moraes: "a senhora já encomendou seu caixão? Porque vocês vão continuar dando a ruas nomes desses terroristas?", etc. e tal. Eu disse meia dúzia de palavrões pro cara no telefone e a gente "botou a boca no trambone". Da outra vez foi um pouco mais sério, porque eles ligaram para a sede várias vezes, para a sede do grupo e para minha casa. E disseram: "Olha, tome cuidado, porque vai explodir uma bomba aí." E pra minha casa era assim: "Tome cuidado porque eu sei dos seus filhos. Eu sei o caminho que eles tomam, eu sei...", e eu comecei a ser seguida acintosamente. Quando eu saía de casa tinha um carro parado que me seguia. Eu não dirijo, eu saía para pegar ônibus ou pegar um táxi, quando eu morava no Méier. E eu era acintosamente seguida. Acintosamente, mesmo. E aí a gente fez a denúncia, a Anistia Internacional nessa época foi importantíssima, recebemos cartas do mundo inteiro; o governo federal na época era FHC, e quem era o secretário nacional de direitos humanos era o José Gregori. Uma vez encontrei com ele em Brasília e ele disse assim: "Ih, dona Cecília, a senhora está dando tanto trabalho pra gente! Temos recebido cartas do mundo inteiro! Deve ser um grupo de malucos, né?" Eu digo "É...é um grupo de militares saudosistas da ditadura, o senhor sabe muito bem quem são". Todo mês a gente recebe o jornalzinho do "TERNUMA", que é do "Terrorismo Nunca Mais". Eles mandam o jornalzinho pra gente. Também mandava pra gente, o Clube Militar do Rio de Janeiro, um jornalzinho chamado "Ombro a ombro". É um jornal que todos os militares da reserva recebem. E aí vinha xingando a gente, xingando o Tortura Nunca Mais; agora eles pararam de mandar o "Ombro a ombro", a gente está até com saudade do "Ombro a ombro"!
Marcelo Salles - Cecília, vocês fazem alguma distinção entre os militares ou todos os militares são iguais? Existem militares que foram contra o golpe...
Sem dúvida!
Marcelo Salles - Conhece o Ivan Proença, por exemplo?
Ivan, nosso salvador! Se não fosse ele eu não estaria aqui falando com você!
Marcelo Salles - Ah, não acredito! Então conta essa história!
Eu agradeço a ele no meu livro! Eu agradeço, eu vou te mostrar a dedicatória que eu fiz ao Ivan no livro. Minha tese de doutorado... A gente, vários fundadores do grupo Tortura Nunca Mais, estávamos no CACO. Vários: eu; Flora Abreu; Vitória Grabois; Ieda Salles, que já morreu; Alcir Henrique da Costa; José Novaes (foi meu ex-marido), o ex-marido de Flora também... Todos nós estávamos no CACO naquela noite.
Marcelo Salles - Foi o 1º de abril?
Foi dia 1º de abril. Em 31 de março nós ainda fomos pra UNE. Eu era ligada ao Partido Comunista Brasileiro na época do golpe; quando a gente soube a informação do golpe eu estava ali na Urca, trabalhava com o Paulo Freire, no programa nacional de alfabetização. E nós tínhamos terminado a primeira turma de alfabetizadores, estávamos iniciando uma solenidade da segunda turma de alfabetizadores. Quando a gente recebeu a notícia do golpe fomos pra UNE. Isso em 31 de março. A gente ficou lá, parte da UNE, etc. e tal, e no dia seguinte a gente combinou de resistir ao golpe. Aí foi todo mundo pra Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, hoje seria o IFCS. Que era ali na Antonio Carlos, ali onde é a Casa de Itália hoje, e de lá a gente partiu pro CACO. Todo o movimento estudantil, quer dizer, o pessoal mais à esquerda do movimento estudantil, principalmente o pessoal militante da Ação Popular do Partido Comunista Brasileiro. E, chegando no CACO, a gente tava esperando as armas do Almirante Aragão, os fuzileiros navais que não vieram. E em determinado momento, já no final da tarde, a gente foi cercado pelo Comando de Caça aos Comunistas, e eram bombas de gás lacrimogêneo e rajadas de metralhadora. Todo mundo foi pra cima, pro segundo andar do CACO, e de repente a coisa parou, e entrou um oficial que era o Ivan.
Marcelo Salles - Capitão, na época, né?
Era capitão. Dizendo que a gente se retirasse, saísse em grupos de cinco e deu os caminhos que a gente deveria seguir, porque na Central do Brasil, ali no Campo de Santana, já tinha muito tumulto, inclusive da população virando carro de polícia, uma coisa muito espontânea. Várias pessoas feridas. E a gente saiu, eu lembro que eu saí descalça, não encontrei meu sapato, e fomos andando, e eu vi a UNE pegando fogo essa noite. Fomos andando a pé porque aquele primeiro de abril foi greve geral dos transportes. Só muito tempo depois a gente veio a saber que tinha sido o Ivan Cavalcante que tinha nos salvo; e logo depois ele foi preso.
Marcelo Salles - A ordem era pra matar todo mundo?
O que ele conta pra gente - tem isso no livro dele - é que ele estava com um pelotão, batalhão, sei lá que nome tem, um grupo de homens que ele comandava, no Palácio Guanabara. Lá no Palácio do Lacerda. E ele soube que tinha um grupo grande de estudantes que estava cercado no CACO e que a ordem era atirar para matar. E ele pegou os homens dele, chegou lá, rendeu - ele disse que inclusive o pessoal do CCC demorou a se render, que os homens dele deram tiro pro alto pra que o pessoal se rendesse, e inclusive disse: "Eu tenho ordens pra que os estudantes saiam, e eu vou garantir a saída desses estudantes com segurança". E entrou lá, sozinho, sozinho... Ele disse que me encontrou no banheiro. Eu não me lembro. Outro dia a gente esteve lá, um ato dos 40 anos do golpe militar, foi muito bonito, no ano passado a gente fez no CACO. E a figura homenageada foi ele. E aí a gente chamou todos aqueles estudantes, quem a gente pôde chamar, que estiveram no CACO aquela noite. E ele me levou e disse "Eu te encontrei no banheiro!" A gente já tava tonta de tanto gás lacrimogêneo.
"A gente pode produzir pequenas revoluções no cotidiano"
Táia Rocha - Que relação o Tortura Nunca Mais teve (se é que teve) com o documentário "Que bom te ver viva" da Lúcia Murat? Conta das mulheres que sobreviveram às torturas...
É...
Táia Rocha - Como você avalia esse filme e, também, qual a importância dele pro trabalho de vocês?
É, a Lúcia é muito nossa amiga e é mais uma presa política também. E eu me lembro que em 1985, quando a gente começou a fazer depoimentos, no governo Brizola, pra denunciar os torturadores, o grupo nem existia ainda, foi uma coisa muito espontânea, e eu acompanhei a Lúcia pra ela prestar depoimento na comissão de direitos humanos que tinha no governo Brizola. E a Lúcia quando fez o filme nos procurou e a gente acompanhou, na avant premiére a gente foi lá, só teve alguns convidados, alguns amigos... Eu acho um filme muito bonito. Muito bonito. Eu só discordo, isso eu falei pra ela, do final do filme. Achei importantíssimo de ser trabalhado, de ser discutido, debatido... Não só um filme de uma sensibilidade muito grande, mas tecnicamente muito bom. E o depoimento daquelas mulheres é um depoimento belíssimo. A Irene Ravache é o alter-ego, é como se fosse a Lúcia Murat. E eu acho, quer dizer, eu discordo do final do filme, quando a Irene Ravache diz "Cuidado, que eu sou um cachorro ferido". Eu acho que isso é assumir o papel de vítima. Eu acho que a gente não é vítima, a gente é sobrevivente. E a gente tem que usar a dor da gente como instrumento de luta. Senão você entra naquela da vítima despotencializada, da vítima pobrezinha, entendeu? Nós não somos vítimas! Nós somos sobreviventes desse regime! E temos que usar essa dor que a gente tem, que são marcas que não vão deixar a gente nunca mais, como instrumento de luta. A gente não tem que ter pena da gente.
Marcelo Salles - Cecília, o Brasil vai conseguir acabar com o capitalismo?
Como dizia o [Félix] Guatari em "Capitalismo mundial integrado"- ele já em 70 falava isso, meu amigo, prevendo a globalização! Em termos de produção e subjetividade, o velho dizia: "O dito mundo socialista não difere em nada do capitalista". Porque em termos de produzir subjetividades, formas de viver e de existir, é a mesma coisa. Então ele chamava de mundo capitalístico. Ou Capitalismo mundial integrado. Eu acho que não. Mas eu acho que a gente pode produzir pequenas revoluções no cotidiano da gente. E isso é importante. Eu hoje não quero fazer a revolução, como a minha geração. A gente aprendeu a duras penas, com muita dor. Aquele sonho que a gente tinha de mudar o mundo, de fazer a revolução no macro ; mas ao mesmo tempo nas nossas pequenas relações, que não são pequenas, nas nossas relações cotidianas éramos muito autoritários. A gente chegava a ser fascista, por vezes. Nas relações com os companheiros, nas relações com os filhos. Então eu acho que a gente aprendeu que, tão importante ou talvez mais importante que fazer essa grande revolução, é fazer as nossas revoluções cotidianas. Porque o fascismo social cada vez se encanta mais. E a gente vê a intolerância, a violência que nos atravessa hoje, uma coisa que a gente tem que estar muito atenta! Você acaba sendo atravessado por essa intolerência! Onde o diferente não tem vez. Então eu acho que o importante é a gente poder fazer essas revoluções moleculares. Eu, aqui no meu grupo de alunos, poder dizer : "Olha, gente, olha o desrespeito ao diferente! Olha como a gente por vezes estabelece relações extremamente fascistas!". Eu acho que a derrota nos ensinou isso. Então, hoje, não vejo assim essa coisa da revolução. Eu vejo pequenas revoluções. Eu não vejo a coisa da utopia lá, não vejo como se fosse a transcendência, lá longe. Eu discordo por exemplo daquela frase do Eduardo Galeano que é belíssima, mas de que eu discordo profundamente "A utopia, o que é a utopia? Ela está lá no horizonte. Você dá dois passos, ela se afasta dois passos, você dá mais dois, ela se afasta mais dois. Então para que serve a utopia? Para isso, para nos fazer caminhar". Eu discordo disso. A gente está produzindo utopias cotidianamente. É no aqui e agora, eu não quero pra depois. E a gente via a revolução assim: essa coisa que está lá, entende? Ela está aqui, no cotidiano da gente, e a gente não está vendo isso.
Mariana Vidal - Mas essas pequenas não caminham para a utopia maior?
Não sei! Não sei. Não vou fazer previsões. Não sei, eu quero funcionar aqui, no agora.
Marcelo Salles - E, Cecília, eu queria saber o seguinte: como é que funciona essa relação do Tortura Nunca Mais com os meios de comunicação de massa? Levando-se em consideração que eles são controlados por esses donos do poder. E como é que fica isso, às vezes você precisa divulgar...
Sempre precisamos divulgar, né! A gente já sabe, a gente aprendeu durante esses 20 anos a como lidar com os grandes meios de comunicação de massa. É... a gente sabe que eles funcionam muito no sensacionalismo, nas coisas emocionais: "Nós vamos lançar uma nota!!" Então a gente faz muito esses apelos, né? E tem funcionado. Até porque o grupo é muito respeitado também. Toda e qualquer denúncia que a gente tem feito, é só quando a gente tem documento que comprove. Tem gente que nos procura para denunciar... Não assumimos a denúncia pelo outro, tentamos fazer uma proteção ao cara, o que é difícil por vezes, né? Por exemplo, a gente só denuncia quando um torturador está em algum órgão de confiança quando a gente tem provas com relação a isso! Entendeu? Tanto que nenhum desses caras que a gente denunciou até hoje chegou para dizer "É mentira!" Nenhum deles! Nenhum deles mostra a cara. Então tem também essa coisa da respeitabilidade do grupo. Que são vinte anos ininterruptos de luta! Então acho que tem esse respeito, essa credibilidade internacional. A gente tem um pool de entidades internacionais muito grande, que imediatamente respondem a qualquer apelo nosso, entende?
Marcelo Salles - Quantas são, mais ou menos?
Ah, eu não tenho idéia, são muitas, são muitas entidades que a gente tem, tem grupo na Espanha com que a gente se corresponde, tem vários grupos na França, Genebra tem vários...
Táia Rocha - A gente estava falando da tortura na ditadura, mas, hoje em dia, onde e como ela aparece mais?
Nos estabelecimentos oficiais. São os presídios, as delegacias policiais, são os estabelecimentos que guardam jovem infrator. Eles estão cumprindo "medidas sócio-educativas". Olha a piada! Segundo o Estatuto da criança e do adolescente, esses estabelecimentos são para fazer com que os jovens infratores cumpram medidas "sócio-educativas", só que a gente sabe que Padre Severino...
Mariana Vidal - No dia que o Padre Severino for sócio-educativo...
Pois é. E DEGASE, né, esses estabelecimentos todos.
Marcelo Salles - E em São Paulo?
Na Febem, São Paulo, eu estive há pouco tempo lá, num grupo, discutindo as torturas na Febem. Então a gente sabe, os jovens são estuprados, são serviciados, são torturados cotidianamente... A gente sabe disso! É o que eu disse: não há vontade política, não houve, até hoje não houve vontade política de nenhum governo para terminar com a prática da tortura. Porque a gente sabe, e eles sabem, onde a tortura existe. Onde ela é praticada. A gente sabe, por exemplo, no presídio da Água Santa, lá no Rio, às sextas-feiras, quando você recebe os novos presos, é tortura coletiva! As pessoas têm que tirar a roupa, entendeu? E são torturadas, espancadas, todo mundo sabe que às sextas-feiras acontece isso na Água Santa. Essa denúncia a gente fez junto com a polícia global sobre a Polinter, o que estava acontecendo na Polinter ; quer dizer, aí começaram a retirar alguns dos presos, mas todo mundo sabe disso ! Que inclusive tem presos que pagam para poder ter uma situação um pouco melhor. Tem que pagar na Polinter.
"Nunca houve democracia nesse país"
Marcelo Salles - Cecília, o país se redemocratizou?
Não, porque nunca houve democracia nesse país. Então eu não gosto dos termos "democracia, redemocratização, democratização"... Eu acho que a gente busca uma democratização. Agora "redemocratização", isso não existe, nunca houve democracia no país! Teve momentos de um pouco mais de abertura, Juscelino, Jango, etc. e tal. Mas nunca houve democracia no país.
Marcelo Salles - Nem com o governo sendo eleito?
Não, porque isso para nós é uma democracia representativa, meu amigo. Isso para nós é o que o Estado capitalista permite.
Marcelo Salles - Eu vou fazer uma provocação, uma pergunta que o Expedito Filho do Estado de São Paulo fez ao Chávez. Ele disse que em Cuba não tem eleição, então é uma ditadura. E que tem muita pobreza e miséria, e o Chávez respondeu: "Mas nos Estados Unidos também têm muita miséria", e o Expedito: "Mas pelo menos lá o miserável pode votar e mudar o destino!" Que você acha disso?
É, pois é. Aí a gente vê a que que o PT se reduziu, para poder eleger, dentro desse esquema capitalista, de representação - que são as eleições, "Tem que ter caixa 2". Olha só! Você vê a que ponto se chega, dentro da lógica capitalista, que é uma lógica que a gente tem que repudiar, porque democracia representativa é o mínimo que a gente tem. Óbvio, eu não estou dizendo "eu não vou votar mais!", entende? Tem gente até que não vota mais, tem gente que é mais radical ainda do que eu. Anula o voto porque acha que essa democracia representativa "não serve pra nada". Porque são as migalhas que o capitalismo dá, no sentido de fazer com que você acredite que você está participando! É uma forma de dizer "olha, veja, a minha participação é essa". Eu não acredito na democracia representativa. Eu não acredito no Estado capitalista. Agora, não por isso, eu não vou deixar de estar tentando eleger alguns representantes que eu acho interessantes. Agora, é limitada a atuação no parlamento. A gente sabe que a atuação no legislativo, no executivo, no judiciário, esses poderes que o capitalismo permite existir, são poderes muito limitados. E se não joga dentro da lógica deles... né? Quer dizer, é um absurdo só esse número de parlamentares serem cassados. O Congresso inteiro tinha que ser cassado! Porque todos eles fazem esse tipo de coisa! Agora, não é você utilizar isso para justificar que os caras não devam ser cassados, para dizer "Não, mas isso sempre se fez!". Como o Lula vem falando. Ou como o Delúbio também falou. "Não, daqui a pouco tempo isso é esquecido! Vai virar até piada de salão", está hoje em O Globo. Porque isso é cinismo! Não se iludir : o parlamento é um espaço pequeno e limitado de atuação. Eu acho que a questão são os movimentos sociais, que a gente tem que fortalecer. Os movimentos sociais que estão aí no mundo, que são invisibilizados, que não estão nos grandes meios de comunicação de massa. Mas que estão acontecendo, estão produzindo coisas interessantíssimas, que a gente não sabe, não fica sabendo... esses daí é que a gente tem que fortalecer. E não o parlamento.Isso é um Estado capitalista, gente. Essa democracia é uma balela! Uma democracia representativa, e que só vai lá ser representante nosso quem tiver muita grana. Daí a necessidade do caixa dois.
Mariana Vidal - O Chávez há pouco tempo quase sofreu um golpe de Estado, mais uma vez com o apoio dos Estados Unidos... E tem tropa dos Estados Unidos aqui do lado, no Paraguai, dizendo que tem terrorismo na Tríplice Fronteira; a todo momento eles estão dizendo que a América Latina tem terrorista, tem terrorista... Você acha possível que as elites locais consigam, com o apoio dos Estados Unidos, chegar ao poder e termos de novo governos ditatoriais na América Latina?
Não. Não há mais necessidade disso. A globalização já está em curso, as multinacionais e o capitalismo financeiro já estão aí vigorando, hoje é ditadura de mercado, como a gente diz, né? Quem fala muito isso são as madres da Praça de Maio, "Da ditadura militar à ditadura de mercado". Não há necessidade mais.
Mariana Vidal - Mesmo falando-se em revolução bolivariana...
Não, eu acho que eles criam esses balões de ensaio, eles produzem esse clima de terror, para ver se até a população se mobiliza nesse sentido. Não, eles botam governos fantoches, a questão do Chávez eu não acompanho muito... Eu tenho algumas questões com o governo Chávez, que eu acho muito populista, muito demagógico, muito apelativo, mas eles estão fazendo toda essa pressão porque o cara não está rezando na mesma cartilha que eles. Daqui a pouco, se começar a rezar, por essa coisa de pressão, serão governos aliados.
Mariana Vidal - Mas na Bolívia parece que vai ser eleito um governo de esquerda...
Eu não acredito. Não acredito. Não acredito. Pode ser um governo um pouco mais à esquerda, etc. e tal... Olha, eu estive em Chiapas, há coisa de dois anos atrás, ou mesmo três, lá num dos acampamentos dos zapatistas. Eu fiquei muito impressionada. Eu acho que eles têm lições assim interessantíssimas para nos dar. Quando eles dizem assim : "Nós não queremos o poder do Estado", é uma coisa assim... "Mas está fazendo o que aí, há anos? Desde 82 está aí na selva!" E foram aprendendo com os indígenas. É muito interessante que eles vêm com aquelas palavras de ordem, maoístas, marxistas, leninistas, né ? E eles vão aprendendo com a população indígena. Eles tiveram o que a nossa esquerda aqui não aprendeu, com a população pobre. Os indígenas diziam que eles diziam "palavras ocas". O grupo inicial. E eles ouviram isso. Essas palavras "revolucionárias", que por vezes a população está tão fudida, está tão... que isso não toca, não afeta a população. Aí eles ouviram, eles tiveram essa sensibilidade de ouvir os povos indígenas e são um movimento belíssimo! Estão produzindo coisas muito interessantes em termos de respeito à diferença, em termos de pegar a questão da mulher, a questão do indígena; questões vistas como minoritárias, e eles dizem o seguinte: "nós somos um grupo de soldados para que não haja mais soldados. Nós somos um grupo militar para que não haja mais militares. Agora, a única coisa que a gente tem hoje são as armas, a gente não vai entregar assim". E a gente sabe que se não fosse o apoio internacional que o movimento tem, sabe que já teriam sido dizimados. Porque é fácil, é uma selva que não é uma selva assim, grande ou espessa como a Selva Amazônica, entendeu? A gente está lá no acampamento, a gente vê helicóptero do exército mexicano fazendo vôo rasante... Eles têm todo um trabalho com a população indígena que é uma coisa belíssima!
Mariana Vidal - Você ficou no acampamento?
Fui, fui lá, fiquei três dias no acampamento deles. Quer dizer, depois de permitirem, porque eu tinha um conhecido, era de uma entidade de direitos humanos que eles conheciam... E o respeito que eles têm pelo saber local! Eles fazem uma mescla, né? Um deles, um dos coordenadores do centro de saúde lá do acampamento, é um indígena cujo pai é curandeiro de uma tribo. E junta todo aquele saber das ervas, disso, daquilo, com a medicina, com a ciência ocidental. E no momento eles sabem que assumir o poder de Estado seria uma forma de administrar o neoliberalismo hoje, num mundo globalizado. Eles no entanto dizem : "Isso nós não queremos. O que nós queremos? Não sei. Temos que ver o que a sociedade mexicana quer". É essa coisa mesmo do micro, das revoluções moleculares, ali do cotidiano de vocês, sabe ? É fazendo alianças, constituindo redes, né ? Eu fiquei muito impactada. "Mas como? Não quer o poder de Estado, tá fazendo o quê, aí?" E é o fortalecimento dos movimentos sociais. Eu vejo assim, hoje, o movimento zapatista não como modelo pra nada, porque se a gente prega modelo a gente empobrece. Mas como coisas interessantes que a gente tem que pensar, hoje, nesse mundo globalizado. Senão a gente cai no "Tá tudo dominado!", é o Estado mínimo, é o neoliberalismo, tá tudo dominado! Não tá! A gente tem espaços de produzir coisas interessantes, como o [Gilles] Deleuze dizia: "A gente tem linhas de fuga". Elas tão aí no mundo. Vamos tentar embarcar nelas!

*Professora, psicóloga, escritora e fundadora do Grupo Tortura Nunca Mais

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Carlos Drumond de Andrade